Este agosto assinala o centenário de falecimento de uma mulher cuja
trajetória foi absolutamente fascinante. Estamos falando de Florence
Nightingale (1820 1910), a criadora da moderna enfermagem (por causa
dela este é também o Ano Internacional da Enfermagem, uma categoria que
merece entusiásticos aplausos), e cuja vida, como se costuma dizer,
daria um romance. Era de família próspera; os Nightingale viajavam
constantemente pela Europa, o que aliás explica o seu nome: nasceu em
Florença, a segunda das duas filhas do casal. Os pais eram pessoas
religiosas, gente tradicional: Florence estava destinada a receber uma
boa educação, a casar com um cavalheiro de fina estirpe, a ter filhos, a
cuidar da casa e da família. Mas logo ficou claro que a menina não se
conformaria a esse modelo. Era diferente; gostava de matemática, e era o
que queria estudar (os pais não deixaram). Aos 16 anos, algo aconteceu:
Deus falou-me escreveu depois e convocou-me para servi-lo. Um episódio
que poderia caracterizá-la como uma mística, mas, diz o historiador
Lytton Strachey, a moça estava longe de ser uma beata desligada da
realidade.
Servir a Deus significava, para ela, cuidar dos enfermos, e
especialmente dos enfermos hospitalizados. Naquela época, os hospitais
curavam tão pouco e eram tão perigosos (por causa da sujeira, do risco
de infecção) que os ricos preferiam tratar-se em casa. Hospitalizados
eram só os pobres, e Florence preparou-se para cuidar deles, praticando
com os indigentes que viviam próximos à sua casa. Viajou por toda a
Europa, visitando hospitais. Coisa que os pais não viam com bons olhos:
enfermeiras eram consideradas pessoas de categoria inferior, de vida
desregrada. Mas Florence foi em frente e logo surgiu a oportunidade para
colocar em prática o que aprendera. Naquela época, Inglaterra e França
enfrentavam Rússia e Turquia na guerra da Crimeia. Sidney Herbert,
membro do governo inglês e amigo pessoal, pediu-lhe que chefiasse um
grupo de enfermeiras enviadas para o front turco, uma tarefa a que
Florence entregou-se de corpo e alma: cuidava incansavelmente dos
pacientes, percorrendo enfermarias à noite; era a “dama da lâmpada”,
segundo a expressão do Times de Londres. Florence providenciava comida,
remédios, agasalhos, além de supervisionar o trabalho das enfermeiras.
Mais que isso, fez estudos estatísticos (sua vocação matemática enfim
triunfou) mostrando que a alta mortalidade dos soldados resultava das
péssimas condições de saneamento. Seus méritos foram reconhecidos, e ela
recebeu uma importante condecoração da rainha Vitória.
Isso tudo não quer dizer que Florence fosse, pelos padrões habituais,
uma mulher feliz. Para começar, não havia, em sua vida, lugar para
ligações amorosas. Cortejou-a o político e poeta Richard Milnes, Barão
Houghton, mas ela rejeitou-o. Ao voltar da guerra, algo estranho lhe
aconteceu: recolheu-se ao leito e nunca mais deixou o quarto. É
possível, e até provável, que isso tenha resultado de brucelose, uma
infecção crônica contraída durante a guerra; mas havia aí um óbvio
componente emocional, uma forma de fuga da realidade. Contudo – Florence
era Florence – mesmo acamada, continuou trabalhando intensamente.
Colaborou com a comissão governamental sobre saúde dos militares, fundou
uma escola para treinamento de enfermeiras, escreveu um livro sobre
esse treinamento.
Estranha, a Florence Nightingale? Talvez. Mas estranheza pode estar
associada a qualidades admiráveis. Grande e estranho é o mundo, é o
título de um livro do romancista Ciro Alegría; grandes, ainda que
estranhas, são muitas pessoas. E se elas têm grandeza, ao mundo pouco
deve importar que sejam estranhas.
Artigo: Moacyr Scliar – clicrbs.com.br
Nightingale (1820 1910), a criadora da moderna enfermagem (por causa
dela este é também o Ano Internacional da Enfermagem, uma categoria que
merece entusiásticos aplausos), e cuja vida, como se costuma dizer,
daria um romance. Era de família próspera; os Nightingale viajavam
constantemente pela Europa, o que aliás explica o seu nome: nasceu em
Florença, a segunda das duas filhas do casal. Os pais eram pessoas
religiosas, gente tradicional: Florence estava destinada a receber uma
boa educação, a casar com um cavalheiro de fina estirpe, a ter filhos, a
cuidar da casa e da família. Mas logo ficou claro que a menina não se
conformaria a esse modelo. Era diferente; gostava de matemática, e era o
que queria estudar (os pais não deixaram). Aos 16 anos, algo aconteceu:
Deus falou-me escreveu depois e convocou-me para servi-lo. Um episódio
que poderia caracterizá-la como uma mística, mas, diz o historiador
Lytton Strachey, a moça estava longe de ser uma beata desligada da
realidade.
Servir a Deus significava, para ela, cuidar dos enfermos, e
especialmente dos enfermos hospitalizados. Naquela época, os hospitais
curavam tão pouco e eram tão perigosos (por causa da sujeira, do risco
de infecção) que os ricos preferiam tratar-se em casa. Hospitalizados
eram só os pobres, e Florence preparou-se para cuidar deles, praticando
com os indigentes que viviam próximos à sua casa. Viajou por toda a
Europa, visitando hospitais. Coisa que os pais não viam com bons olhos:
enfermeiras eram consideradas pessoas de categoria inferior, de vida
desregrada. Mas Florence foi em frente e logo surgiu a oportunidade para
colocar em prática o que aprendera. Naquela época, Inglaterra e França
enfrentavam Rússia e Turquia na guerra da Crimeia. Sidney Herbert,
membro do governo inglês e amigo pessoal, pediu-lhe que chefiasse um
grupo de enfermeiras enviadas para o front turco, uma tarefa a que
Florence entregou-se de corpo e alma: cuidava incansavelmente dos
pacientes, percorrendo enfermarias à noite; era a “dama da lâmpada”,
segundo a expressão do Times de Londres. Florence providenciava comida,
remédios, agasalhos, além de supervisionar o trabalho das enfermeiras.
Mais que isso, fez estudos estatísticos (sua vocação matemática enfim
triunfou) mostrando que a alta mortalidade dos soldados resultava das
péssimas condições de saneamento. Seus méritos foram reconhecidos, e ela
recebeu uma importante condecoração da rainha Vitória.
Isso tudo não quer dizer que Florence fosse, pelos padrões habituais,
uma mulher feliz. Para começar, não havia, em sua vida, lugar para
ligações amorosas. Cortejou-a o político e poeta Richard Milnes, Barão
Houghton, mas ela rejeitou-o. Ao voltar da guerra, algo estranho lhe
aconteceu: recolheu-se ao leito e nunca mais deixou o quarto. É
possível, e até provável, que isso tenha resultado de brucelose, uma
infecção crônica contraída durante a guerra; mas havia aí um óbvio
componente emocional, uma forma de fuga da realidade. Contudo – Florence
era Florence – mesmo acamada, continuou trabalhando intensamente.
Colaborou com a comissão governamental sobre saúde dos militares, fundou
uma escola para treinamento de enfermeiras, escreveu um livro sobre
esse treinamento.
Estranha, a Florence Nightingale? Talvez. Mas estranheza pode estar
associada a qualidades admiráveis. Grande e estranho é o mundo, é o
título de um livro do romancista Ciro Alegría; grandes, ainda que
estranhas, são muitas pessoas. E se elas têm grandeza, ao mundo pouco
deve importar que sejam estranhas.
Artigo: Moacyr Scliar – clicrbs.com.br
Este agosto assinala o centenário de falecimento de uma mulher cuja
trajetória foi absolutamente fascinante. Estamos falando de Florence
Nightingale (1820 1910), a criadora da moderna enfermagem (por causa
dela este é também o Ano Internacional da Enfermagem, uma categoria que
merece entusiásticos aplausos), e cuja vida, como se costuma dizer,
daria um romance. Era de família próspera; os Nightingale viajavam
constantemente pela Europa, o que aliás explica o seu nome: nasceu em
Florença, a segunda das duas filhas do casal. Os pais eram pessoas
religiosas, gente tradicional: Florence estava destinada a receber uma
boa educação, a casar com um cavalheiro de fina estirpe, a ter filhos, a
cuidar da casa e da família. Mas logo ficou claro que a menina não se
conformaria a esse modelo. Era diferente; gostava de matemática, e era o
que queria estudar (os pais não deixaram). Aos 16 anos, algo aconteceu:
Deus falou-me escreveu depois e convocou-me para servi-lo. Um episódio
que poderia caracterizá-la como uma mística, mas, diz o historiador
Lytton Strachey, a moça estava longe de ser uma beata desligada da
realidad
trajetória foi absolutamente fascinante. Estamos falando de Florence
Nightingale (1820 1910), a criadora da moderna enfermagem (por causa
dela este é também o Ano Internacional da Enfermagem, uma categoria que
merece entusiásticos aplausos), e cuja vida, como se costuma dizer,
daria um romance. Era de família próspera; os Nightingale viajavam
constantemente pela Europa, o que aliás explica o seu nome: nasceu em
Florença, a segunda das duas filhas do casal. Os pais eram pessoas
religiosas, gente tradicional: Florence estava destinada a receber uma
boa educação, a casar com um cavalheiro de fina estirpe, a ter filhos, a
cuidar da casa e da família. Mas logo ficou claro que a menina não se
conformaria a esse modelo. Era diferente; gostava de matemática, e era o
que queria estudar (os pais não deixaram). Aos 16 anos, algo aconteceu:
Deus falou-me escreveu depois e convocou-me para servi-lo. Um episódio
que poderia caracterizá-la como uma mística, mas, diz o historiador
Lytton Strachey, a moça estava longe de ser uma beata desligada da
realidad
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